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Encontro on-line 19/02/2024
Obituário de Michael Krohnen (15/09/1943 – 19/12/2023)
A Instituição Cultural Krishnamurti – Rio de Janeiro transcreve abaixo a nota divulgada pela Krishnamurti Foundation of America (KFA), por ocasião da morte de Michael Krohnen, colaborador assíduo em diversas atividades desenvolvidas pela KFA e pessoa de convivência com Krishnamurti, inclusive como chef de cozinha em Ojai/USA, durante um longo período.
Esse contexto inspirou a preparação e a publicação dos dois volumes do livro “Crônicas da Cozinha: 1001 almoços com J. Krishnamurti”, em que Michael nos permite acompanhar um pouco desse dia a dia, com seu olhar sensível e afetuoso, e compartilhar o impacto que essa relação provocou em sua vida.
Michael, que também falava português, esteve no Brasil (ver foto) para encontros presenciais sobre os ensinamentos de Krishnamurti, ocorridos em Tiradentes – MG, quando estabeleceu relacionamentos calorosos e bem-humorados com os participantes brasileiros.
Segue trecho de prólogo no volume I, quando descreve suas impressões iniciais sobre K: “Percebi que ali estava uma voz da razão, de penetrante insight sobre a condição humana, de uma maneira que eu nunca antes havia escutado. Sem oferecer um sistema de crença, um método ou uma interpretação, ele descrevia com acurácia a situação global da humanidade, em uma linguagem simples e clara, demonstrando o caráter das organizações nacionais e religiosas. Recomendava insistentemente que cada um descobrisse a verdade por e para si mesmo, e negava qualquer forma de autoridade espiritual ou religiosa, inclusive a sua própria”.
NOTA DIVULGADA PELA KFA:
“Michael Krohnen
15 de setembro de 1943 – 19 de dezembro de 2023
Convidamos você a se reunir conosco para celebrar a vida do nosso querido amigo, Michael Krohnen.
Michael era parte integrante da nossa comunidade, dedicando quase 50 anos de sua vida à Fundação Krishnamurti da América. Ele desempenhou um papel fundamental de moldar a visão do Centro em Ojai. Era um rosto familiar, uma alma carinhosa, e o primeiro contato para muitos que visitaram a KFA.
Junte-se a nós para homenagear a vida de Michael no Domingo, 7 de janeiro de 2024, das 15h às 17h (nota: horário local) na Biblioteca de Pine casa de campo (1098 McAndrew Rd, Ojai, Califórnia). Nós nos uniremos para compartilhar memórias e histórias e comemorar o impacto duradouro de Michael na vida de cada um de nós.
A vida de Michael refletiu lindamente sua paixão pela poesia e seu amor pela natureza.
(…)
Além de suas contribuições literárias, Michael era um homem caloroso e uma presença amigável, sempre pronto para uma conversa. Ele não apenas serviu como o zelador noturno do Retiro Krishnamurti, como exerceu o cargo de bibliotecário e arquivista no Centro Krishnamurti, sendo também um viajante mundial, historiador e notável poeta. Como ex-chef de Krishnamurti e autor de Crônicas da Cozinha: 1001 almoços com J. Krishnamurti, ele tocou a vida de muitos dentro e fora da comunidade.”
Novos diálogos traduzidos – Brockwook Park – junho/1985
Mais uma série de vídeos teve suas legendas traduzidas para a língua portuguesa. São os diálogos entre K e quatro estudantes de Brockwood Park, ocorridos em junho de 1985, com os seguintes temas:
- Como foi sua educação, seu meio?
- Existe liberdade quando existe aprendizado.
- A comparação não é uma forma de violência?
Os links foram acrescentados ao final da página Diálogos.
Agendamento de visita
Face ao reduzido número de colaboradores, o atendimento ao público na sede da ICK precisa ser previamente agendado pelo e-mail ick@krishnamurti.org.br.
Site kinfonet.org
Aos interessados em ampliar o contato com outros observadores de K, e que têm intimidade com a língua inglesa, informamos a existência do site Kinfonet, onde se pode encontrar divulgação de grupos de diálogo, eventos e publicações, além de um fórum de discussões. Para acessá-lo, clique aqui.
Encontro anual de maio da KFA
O Encontro Anual de Maio da KFA ocorreu recentemente, significando uma ocasião importante dentro da agenda anual da Fundação.
Os participantes se reuniram ansiosamente para conhecer novos e velhos amigos, ouvir palestras, participar de discussões e apreciar a beleza serena do campus da Oak Grove School, em Ojai, Califórnia.
Se você quer ver as gravações dessas palestras, clique aqui. É possível configurar as legendas para o português, geradas automaticamente.
Essas gravações estarão disponíveis até agosto.
Boletim da KFLA – maio
Rede Social Krishnamurti (idioma português disponível)
Venham para o Fluffychat – https://fluffychat.im/web/
Bate-papo e mensagens instantâneas seguros.
Não requer registro, nem precisa instalar nada, pode entrar com a conta do Element, Google, Facebook ou Apple.
Entrem na nossa sala pública Observadores de Krishnamurti e encontrem outros estudiosos dos ensinamentos.
Intérpretes e comentadores
Os ensinamentos são importantes por si mesmos e intérpretes ou comentadores apenas os distorcem, sendo aconselhável ir diretamente à fonte, os próprios ensinamentos, e não se valer de nenhuma autoridade.
Jiddu Krishnamurti
Nosso grupo de discussão no Google Groups
Visite as nossas salas do Element
Quer conversar sobre os ensinamentos de K? Então, clique aqui, entre em uma de nossas salas virtuais no Element, e junte-se a uma conversa já em andamento ou inicie uma nova.
Krishnamurti Summer Gathering
Falecimento do presidente da ICK
Informamos o falecimento, em 13/07/22, do Sr. Onofre Maximo, que por décadas administrou e protegeu a ICK de sua extinção, por muitas vezes solitário, oferecendo, através do seu zelo contínuo, a oportunidade de traduzirmos um grande volume de material — textos, vídeos e livros — o que proporcionou o acesso dos falantes da língua portuguesa à grande parte da mensagem de Krishnamurti.
Estaremos posteriormente dando continuidade ao trabalho da ICK, para adaptá-lo mais plenamente às novas formas de comunicação digital.
Agradecimento aos tradutores e aos revisores
Agradecemos a todos os tradutores e revisores que colaboraram, durante todas essas décadas, e à nossa querida colaboradora e tradutora Maristela Nicolellis, que coordena a equipe atual, tornando possível a disponibilização da mensagem de Krishnamurti aos falantes da língua portuguesa. Esse trabalho incansável já produziu mais de 200 traduções, disponíveis no canal oficial da Krishnamurti Foundation Trust (kfoundation.org/1/pt-video), oferecendo a todos uma oportunidade de descobrir uma nova maneira de viver.
ICK
O primeiro ebook
A ICK, em parceria com a KFT, acaba de publicar pela Amazon o seu primeiro ebook. Trata-se de “O findar do tempo”, que já constava do nosso catálogo de livros físicos há algum tempo e agora está sendo disponibilizado em formato eletrônico, atingindo assim um maior número de leitores e proporcionado a economia que esse tipo de publicação traz.
Estes diálogos entre Jiddu Krishnamurti e o físico teórico David Bohm começaram por abordar a origem do conflito humano. Ambos concordaram em atribuir isto à natureza separatista e presa ao tempo do self e à forma com que ela nos condiciona a confiar erroneamente no pensamento, que está baseado na experiência passada inevitavelmente limitada. A possibilidade do insight que terminará com esta mentalidade defeituosa foi discutida em profundidade. O foco então mudou para uma investigação do significado da morte, e uma discussão investigando as razões do ser e o lugar da consciência no universo. Os diálogos finais revisam o vínculo profundo que Krishnamurti e Bohm viram entre estas questões essenciais e a vida do dia a dia, e o que podemos fazer sobre as barreiras que se encontram no caminho. Ajuda – não palavras. Como você ajudaria outra pessoa a chegar a isso? Entende o que estou tentando dizer?
O Papel da ICK
Fundada por Jiddu Krishnamurti em 1935 como uma extensão das Fundações Krishnamurti, a Instituição Cultural Krishnamurti tem por missão a preservação e divulgação dos ensinamentos no Brasil, sempre de acordo com as decisões da K.F.T (Krishnamurti Foundation Trust) e da K.F.A. (Krishnamurti Foundation of America), responsáveis diretas e exclusivas por tudo que se refere aos direitos de publicação, royalties e fiscalização do material publicado através de qualquer meio no Brasil e no mundo.
Ainda que nossos constantes esforços pela disponibilização da obra de Krishnamurti no mercado editorial brasileiro atinjam muito pouco daquilo que poderíamos pretender, buscamos sempre outras formas de levar ao público as notícias mais recentes a respeito dos projetos em andamento ao redor do mundo e o mesmo acesso privilegiado aos ensinamentos de que dispõem sobretudo os leitores de língua inglesa, tanto com relação aos livros quanto ao material digitalizado, tentando garantir os direitos necessários junto às fundações.
Essa é a razão de nosso empenho na distribuição das séries de DVDs produzidas na Inglaterra, nas traduções e parcerias com edições de revistas e jornais internacionais ligados às escolas e a todos os outros projetos ao redor do mundo. Sobretudo nos últimos meses, temos estreitado os laços com as fundações, recebendo inclusive, no dia 5 de junho, a visita de Michael Krohnen, cozinheiro e amigo pessoal de Krishnamurti durante os últimos anos de sua vida, autor do livro Kitchen Chronicles – 1001 lunches with J. Krishnamurti (ainda sem tradução em português).
Com o surgimento de vários novos projetos e atividades em nossa instituição, convidamos nosso público a ampliar cada vez mais o contato conosco, tendo sempre como ponto de referência nosso website e as edições da ICK em Revista, as únicas formas oficiais e legítimas de contato entre as fundações e os leitores brasileiros.
A essência do ensinamento de Krishnamurti
A essência do ensino de K está contida na declaração feita por ele em 1929, quando disse:
“A Verdade é uma terra sem caminho”. O homem não chegará a ela através de organização alguma, de qualquer crença, de nenhum dogma, de nenhum sacerdote ou mesmo um ritual, e nem através do conhecimento filosófico ou da técnica psicológica. Ele tem que descobri-la através do espelho das relações, por meio de compreensão do conteúdo da sua própria mente, mediante a observação, e não pela análise ou dissecação introspectiva. O homem tem construído imagens em si próprio, como muros de segurança – imagens religiosas, políticas, pessoais. Estas se manifestam como símbolos, ideias, crenças. O peso dessas imagens domina o pensamento do homem, as suas relações e a sua vida diária. Tais imagens são as causas de nossos problemas, pois elas dividem os homens. A sua percepção da vida é formada pelos conceitos já estabelecidos em sua mente. O conteúdo de sua consciência é a sua consciência total. Este conteúdo é comum a toda humanidade. A individualidade é o nome, a forma e a cultura superficial que o homem adquire da tradição e do ambiente. A singularidade do homem não se acha na sua estrutura superficial, porém na completa libertação do conteúdo de sua consciência, comum a toda humanidade. Desse modo ele não é um indivíduo.
A liberdade não é uma reação, nem tampouco uma escolha. É pretensão do homem pensar ser livre porque pode escolher. Liberdade é observação pura, sem direção, sem medo de castigo ou recompensa. A liberdade não tem motivo: ela não se acha no fim da evolução do homem e sim, no primeiro passo de sua existência. Mediante a observação começamos a descobrir a falta de liberdade. A liberdade reside na percepção, sem escolha, de nossa existência, da nossa atividade cotidiana.
O pensamento é tempo. Ele nasce da experiência e do conhecimento, coisas inseparáveis do tempo e do passado. O tempo é o inimigo psicológico do homem. Nossa ação baseia-se no conhecimento, portanto, no tempo, e desse modo, o homem é um eterno escravo do passado. O pensamento é sempre limitado e, por conseguinte, vivemos em constantes conflito e numa luta sem fim. Não existe evolução psicológica.
Quando o homem se tornar consciente dos movimentos dos seus próprios pensamentos ele verá a divisão entre o pensador e o pensamento, entre o observador e a coisa observada, entre aquele que experimenta e a coisa experimentada. Ele descobrirá que esta divisão é uma ilusão. Só então haverá observação pura, significando isso percepção sem qualquer sombra do passado ou do tempo. Este vislumbre atemporal produz uma profunda e radical mutação em nossa mente.
A negação total é a essência do positivo. Quando há negação de todas aquelas coisas que o pensamento produz psicologicamente, só então existe o amor, que é compaixão e inteligência.
Esta exposição foi originalmente escrita pelo próprio Krishnamurti, em 21 de outubro de 1980, para ser publicada no livro “Krishnamurti: Os Anos de Realização”, de Mary Lutyens.
Por que nos magoamos?
I – Alguma vez você fica magoado, senhor?
K – Fisicamente, você quer dizer?
I – Não é bem isso. Não sei como expressá-lo em palavras, mas sentimos em nosso íntimo que as pessoas podem nos causar mal, ferir-nos, fazer-nos infelizes. Alguém diz qualquer coisa e nós nos encolhemos. Refiro-me a isso quando falo em nos magoar. Todos nos magoamos uns aos outros desse jeito. Alguns o fazem deliberadamente, outros sem o saber. Por que ficamos magoados? É tão desagradável!
K – A mágoa física é uma coisa, e a outra é muito mais complexa. Se você for magoado fisicamente, saberá o que fazer. Irá procurar um médico e ele tentará curá-lo. Mas se a lembrança da mágoa persistir, você estará sempre nervoso e apreensivo, o que criará uma forma de medo, justificado pela permanência da lembrança da mágoa passada, que não quer ver repetida. Isso é perfeitamente compreensível e o medo pode tornar-se neurótico ou ser tratado de modo sadio, sem excessiva preocupação. Mas a outra mágoa, a interior, necessita de cuidadosa análise. Precisamos aprender muita coisa sobre ela.
Em primeiro lugar, por que você fica magoado? Desde a infância, este parece ser um fator importante em nossas vidas: não se magoar, não ser ferido por outra pessoa, por uma palavra, por um gesto, por um olhar, por uma experiência. Por que nos magoamos? Porque somos sensíveis, ou porque temos uma imagem de nós mesmos que precisamos proteger, que sentimos ser importante para a nossa existência, uma imagem sem a qual nos sentimos perdidos, confusos? Existem as duas razões: a imagem e a sensibilidade. Compreendem o que queremos dizer com o sermos sensíveis tanto física como interiormente? Se forem sensíveis e um tanto tímidos, retrair-se-ão em si mesmos, erguerão um muro ao redor de si mesmos, a fim de não serem magoados. É o que fazem, não é? Uma vez que tenham sido magoados por uma palavra ou por uma crítica, que os tenham ferido, passam a construir um muro de resistência. Não querem continuar vulneráveis. Vocês podem ter uma imagem, uma ideia de si mesmos de que são importantes, de que são inteligentes, de que sua família é melhor do que as outras, de que disputam jogos melhor do que outros. Vocês têm essa imagem de si mesmos, não têm? E quando a importância dela é posta em dúvida, abalada ou despedaçada, vocês se sentem muito magoados. Há autopiedade, ansiedade, medo. E se o fato se repetir, construirão uma imagem ainda mais forte, mais afirmativa, mais agressiva, etc. Vocês se protegem para que ninguém os perturbem, o que também significa erguer um muro contra qualquer invasão. De modo que tanto o sensível quanto o que faz a imagem produzem os muros de resistência. Sabem o que acontece quando erguem um muro à sua volta? O mesmo que acontece quando constroem um muro muito alto em torno de sua casa. Não veem os vizinhos, não recebem a luz do sol em quantidade suficiente, vivem num espaço muito reduzido com todos os membros de sua família. E, não tendo espaço bastante, começam a mexer com os nervos uns dos outros, brigam, ficam violentos, desejam ir embora e se revoltam. E se tiverem dinheiro suficiente e suficiente energia, construirão outra casa com outro muro em torno dela, e assim por diante. A resistência implica falta de espaço e é fator de violência.
I – Mas – perguntou um deles – não devemos proteger-nos?
K – Contra o quê? Vocês devem se proteger, naturalmente, da doença, das chuvas e do sol; mas quando perguntam se não devemos nos proteger, não estarão pedindo para erguer um muro a fim de não serem magoados? Pode ser seu irmão ou sua mãe a pessoa contra a qual erguem o muro, pensando em se defender; no fim, porém, isso conduz à sua própria destruição e à destruição da luz e do espaço.
I – Mas – acudiu uma moça de longos cabelos trançados – o que devo fazer quando me magoam? Sei que estou magoada. Eu me magoo com muita frequência. Que devo fazer? O senhor diz que não se deve erguer um muro de resistência, mas não posso viver com tantas mágoas.
K – Compreenda, se me permite questionar, por que está magoada? E quando se magoa? Olhe para aquela folha ou para aquela flor. É muito delicada e sua beleza está na própria delicadeza. É terrivelmente vulnerável e, no entanto, vive. E você, que se magoa facilmente, acaso se perguntou quando e por que se magoa? Por que você se magoa – quando alguém diz alguma coisa de que não gosta, quando alguém é agressivo, violento com você? Por que você se magoa? Se se magoar e erguer um muro em torno de si mesma, o que significa retraimento, você passará a viver num espaço muito pequeno dentro de si mesma. Nesse espaçozinho não haverá luz nem liberdade e, assim, será mais e mais magoada. Por isso mesmo a questão se resume em saber se você é capaz de viver livre e feliz, sem ser magoada, sem erguer muros de resistência. Essa é a questão importante. Não a maneira de reforçar os muros nem o que fazer quando há um muro ao redor de seu espaçozinho. Portanto, há duas coisas envolvidas nisso: a lembrança da mágoa e a prevenção de mágoas futuras. Se essa lembrança persistir e você lhe acrescentar novas lembranças de mágoas, o seu muro se tornará mais forte e mais alto, o espaço e a luz se tornarão menores e mais embaçados, e haverá grande sofrimento, uma autopiedade cada vez maior e muita amargura. Se você vir com bastante clareza o perigo disso, sua inutilidade, a lástima que isso é, as lembranças passadas se desvanecerão. Mas você tem de ver isso como veria o perigo de uma cobra venenosa. Você sabe que o perigo é mortal e não se aproxima dele. Consegue ver da mesma forma o perigo das lembranças passadas com suas mágoas, seus muros de autodefesa? Consegue ver realmente, assim como vê esta flor? Se o vir, ele inevitavelmente desaparecerá.
Assim, você já sabe o que fazer com as mágoas passadas. E como olhará as futuras? Não será construindo muros. Isso é claro, não é? Se o fizer, será cada vez mais magoada. Observe com cuidado, por favor. Sabendo que você poderá ser magoada, como impedirá que a mágoa ocorra? Se alguém lhe disser que você não é inteligente nem bonita, você se sentirá magoada, ou zangada, que é outra forma de resistência. Ora, o que você pode fazer? Você viu como as mágoas passadas se desvanecem sem o menor esforço; viu porque ouviu e prestou atenção. Agora, quando alguém lhe disser alguma coisa desagradável, fique atenta; preste muita atenção. A atenção impedirá que a mágoa atinja o alvo. Você compreendeu o que queremos dizer com atenção?
I – O senhor quer dizer concentração, não é?
K – Não exatamente. A concentração é uma forma de resistência, uma forma de exclusão, um fechamento de porta, uma retirada. A atenção é algo muito diferente. Na concentração há um centro de onde se realiza a ação da observação. Onde há um centro, o raio de observação é muito limitado. Onde não há centro, a observação é vasta, clara. Isso é atenção.
I – Receio que não compreendemos nada disso, senhor.
K – Olhem para aquelas colinas, vejam a luz que as inunda, vejam as árvores, ouçam passar o carro de bois; vejam as folhas amarelas, o leito seco do rio, o corvo sentado no galho. Olhem para tudo isso. Se olharem a partir de um centro, com o seu preconceito, seu medo, sua simpatia e sua antipatia, não verão a vasta extensão da terra. Seus olhos estarão enevoados, terão ficado míopes e a sua visão será deformada. Não podem olhar para tudo isso, para a beleza do vale, para o céu, sem o centro? Pois isso é atenção. Portanto, ouçam com atenção e, sem o centro, a crítica alheia, o insulto, a raiva, o preconceito alheios. E porque não há centro nessa atenção, não há possibilidade de serem magoados. Mas onde há centro, a mágoa é inevitável. E a vida se torna um grito de medo.
O Começo do Aprendizado – Editora Cultrix
Titulo do Original – Beginnings of learning
Trecho selecionado do livro “O Vôo da Águia” (p. 36-45)
MEDITAÇÃO
O Significado da “Busca”; problemas atinentes à prática (adestramento) e ao controle; natureza do silêncio.
Desejo falar a respeito de um assunto que se me afigura de suma importância; compreendendo-o, ficaremos, talvez, habilitados a alcançar, por nós mesmos, um percebimento total da vida e, portanto, a agir de maneira completa, livres e felizes.
Andamos sempre a buscar uma certa coisa misteriosa, porque nos vemos insatisfeitos com a vida que estamos levando, com a superficialidade de nossas atividades, tão pouco expressivas, às quais, entretanto, queremos dar significação e sentido; mas esta é uma atividade do intelecto e, por conseguinte, será sempre superficial, ilusória, e, por fim, sem nenhum significado. Todavia, sabendo de tudo isso – sabendo que nossos prazeres são efêmeros e nossas atividades diárias mera rotina; sabendo também que nossos problemas – tantos deles – talvez nunca possam ser resolvidos; e já descrentes de tudo, sem fé nos valores tradicionais, nos instrutores, nos gurus, nas sanções da Igreja e da sociedade – continuamos, a maioria de nós, a tatear, a buscar alguma coisa de real valia, incontaminada pelo pensamento, um certo estado extraordinário, de real beleza e êxtase. A maioria de nós, parece-me, deseja descobrir algo que seja duradouro, que não possa corromper-se facilmente. Esquecendo a realidade objetiva, entregamo-nos – sem emoção ou sentimentalismo – a esse profundo ansiar, essa profunda inquirição, que porventura nos dará acesso a uma realidade não mensurável pelo pensamento e que não cabe em nenhuma categoria de fé ou de crença. Mas, tem o buscar alguma significação?
Vamos examinar a questão da meditação. Sendo um assunto bastante complexo, antes de começarmos a examiná-lo temos de compreender claramente esta nossa busca, este desejo de experiência, de descobrir uma realidade. Devemos compreender a significação do buscar, esse desejo de verdade, esse tatear intelectual por uma coisa nova, independente do tempo, não criada por nossas exigências e necessidades, nossas compulsões e desespero. Pode achar-se a verdade mediante busca? Ela é reconhecível quando a achamos? Se a achamos, podemos dizer: “Eis a verdade”,”Eis o real”? Tem a busca algum significado? A maioria dos indivíduos religiosos fala sem cessar sobre a busca da Verdade; e nós perguntamos se se pode buscar a Verdade. Na idéia de buscar, de achar, não está também contida a idéia de reconhecimento, a idéia de que, achando uma coisa, devo ser capaz de reconhecê-la? E o reconhecimento não supõe conhecimento prévio? A Verdade é reconhecível – no sentido de ter sido antes experimentada, de modo que possamos dizer: “Ei-la”? Assim, que valor tem o buscar? Ou, se o buscar não tem valor algum, o que vale é apenas a observação constante, o constante escutar? (que não é a mesma coisa que buscar). Na observação constante não há movimento do passado. “Observar” significa “ver claramente”. Para vermos com clareza, necessitamos de liberdade – precisamos estar livres do ressentimento, da inimizade, do preconceito, da animosidade, livres de todas as memórias que armazenamos como saber e que impedem o ver. Quando existe essa capacidade, essa liberdade com observação constante, não só das coisas exteriores, mas também das coisas interiores, de tudo o que se está passando, que necessidade há, então, de buscar – se o fato – o que é – está à vossa frente para ser observado? Mas, no mesmo instante em que queremos alterar “o que é”, começa a deformação. No observar livremente, sem deformação, sem avaliação, sem nenhum desejo de prazer, no simples observar, verifica-se uma extraordinária transformação do que é.
Em geral, queremos preencher nossa vida com conhecimentos, entretenimentos, com crenças e aspirações espirituais, coisas que, quando as observamos, têm muito pouco valor; desejamos ter uma experiência transcendental, acima de todas as coisas mundanas; desejamos experimentar algo imenso, sem limites, atemporal. Para “experimentarmos” o imensurável, temos de compreender o significado da experiência. Porque desejamos “experiência”?
Por favor, não aceiteis nem rejeiteis o que o orador está dizendo; examinai-o! O orador – mais uma vez, sejamos precisos a este respeito – o orador não tem nenhum valor (ao vos servirdes de um telefone, não obedeceis ao que ele diz, O telefone não é nenhuma autoridade, mas vós o escutais.) Se escutais com atenção, nessa atenção há afeição; não há concordância, nem discordância, porém uma mente disposta a dizer: “Ouçamos o que ele está dizendo, e vejamos se tem algum valor; tratemos de discernir o que é verdadeiro e o que é falso”. Não aceiteis nem rejeiteis, mas observai e escutai, não só o que se esta dizendo, mas também vossas próprias reações e as deformações que produzis enquanto estais escutando; vede vossos preconceitos, vossas imagens, vossas experiências, vede a sua função de impedir-vos de escutar.
Perguntamos: Qual o significado da experiência? Tem ela alguma significação? Pode a experiência despertar a mente que está dormindo, a mente que chegou a certas conclusões e se acha dominada e condicionada por crenças? Pode a experiência despertá-la, destruir toda essa estrutura? Essa mente tão condicionada, tão oprimida por problemas sem conta, pelo desespero e a aflição – essa mente é capaz de reagir a algum desafio? É? E, se reage, sua reação não é necessariamente inadequada e, portanto, conducente a mais conflito? Essa perene busca de experiências mais amplas, mais profundas, transcendentais, é apenas uma maneira de fugirmos à realidade, ao que é – que somos nós mesmos e nossa mente condicionada. Que necessidade tem de qualquer experiência a mente verdadeiramente desperta, inteligente e livre? Luz é luz, e não pede mais luz. O desejo de mais experiência e fuga ao fato real, ao que é.
Se estamos livres dessa incessante busca, livres da exigência e do desejo de experimentar coisas extraordinárias, podemos passar a investigar o que é meditação. Esta palavra, tal como as palavras “amor”, “morte”, “beleza”, “felicidade”, está sobremaneira “carregada”. Há muitas escolas que ensinam a meditar. Mas, para compreendermos o que é meditação, temos de lançar as bases da conduta virtuosa. Sem essa base, a meditação é, em verdade, uma forma de auto-hipnose. Se não estamos livres da cólera, do ciúme, da inveja, da avidez, da ganância, do ódio, da competição, do desejo de sucesso – de todas as formas “morais” e “respeitáveis” disso que se considera “conduta virtuosa” – se não lançamos a base correta, se não vivemos uma vida diária isenta da deformação causada pelo nosso medo, ansiedade, avidez, etc., a meditação pouco importa. O lançamento daquela base é sumamente importante. Assim, perguntamos: Que é virtude? Que é moralidade? Não digais, por favor, que esta e uma pergunta “burguesa”, sem significação numa sociedade permissiva. Não nos interessa essa espécie de sociedade; o que nos interessa é uma vida totalmente livre do medo, uma vida capaz de amor profundo e inalterável. Sem ela, a meditação se torna uma digressão, assemelha-se a uma droga que se toma – como tantos o fazem – para ter uma experiência maravilhosa… e continuar a viver uma vida vulgar e insignificante. Os que tomam drogas para terem experiências extraordinárias vêem talvez um pouco mais intensamente as cores, tornam-se talvez um pouco mais sensíveis e, com a sensibilidade adquirida nesse estado quimicamente provocado, talvez possam ver sem nenhum espaço entre o “observador” e a “coisa observada”; mas, passado o efeito químico, ei-los de volta ao mesmo lugar onde estavam, de volta ao seu medo, seu tédio, sua velha rotina – e, portanto, obrigados a tomar de novo a droga.
A menos que se lance a base da virtude, a meditação se torna um artifício para controlar a mente, torná-la quieta, forçá-la a ajustar-se ao padrão de um sistema que diz: “Faze estas coisas, e terás uma valiosa recompensa”. Mas, essa mente – não importa o que façamos por meio de todos os métodos e sistemas existentes – permanecerá insignificante, vulgar, condicionada e, por conseguinte, sem valor. Cumpre-nos investigar o que é virtude, o que é conduta. Conduta é resultado do condicionamento ambiente, da sociedade, da cultura em que a pessoa foi criada? Se vos comportais de acordo com esse condicionamento, isso é virtude? Ou consiste a virtude em estar-se livre da moralidade social, de avidez, de inveja, etc. – coisas consideradas altamente respeitáveis? Pode-se cultivar a virtude? E, se ela pode ser cultivada, não se torna uma coisa mecânica e, por conseguinte, sem nenhuma “virtude”? A virtude é uma coisa viva, fluente, que se renova constantemente e de maneira nenhuma pode ser “ajuntada” no tempo. Isso é como dizer que se pode cultivar a humildade. Pode-se cultivar a humildade? Só o homem vaidoso “cultiva” a humildade; mas esse homem, não importa o que cultive, permanecerá vaidoso. Mas, quando se vê claramente a natureza da vaidade e do orgulho, esse próprio ver liberta da vaidade e do orgulho; e, então, existe a humildade. Se está bem claro isto, podemos passar a investigar o que é meditação. Se não sois capaz de meditar verdadeiramente, com profundeza e seriedade – não por um ou dois dias apenas, e depois desistirdes – nesse caso, peço-vos o favor de não falar em meditação. A meditação, quando a compreendemos deveras, é uma das coisas mais maravilhosas deste mundo; mas não tendes possibilidade de compreendê-la se não tiverdes terminado o vosso buscar, tatear, desejar, vossa sofreguidão de agarrar uma certa coisa que pensais ser a Verdade, mas que é apenas vossa própria projeção. Só podeis alcançar o estado de meditação quando já não estais a exigir nenhuma espécie de experiência, quando compreendeis a confusão em que estais vivendo, a desordem existente em vossa vida. Com a observação dessa desordem, vem a ordem – uma ordem não antecipadamente planejada. Se se fez essa observação – a qual, em si, é meditação – pode-se então perguntar, não só o que é meditação, mas também o que não é meditação, porque na negação do que é falso encontra-se a verdade.
Evidentemente, é falso qualquer sistema ou método que ensina a meditar. Isso é fácil de perceber, intelectual e logicamente, porque, quando nos exercitamos de acordo com um método – por mais nobre que este seja, por mais antigo, ou moderno, ou popular – estamo-nos convertendo em máquinas, executando repetidamente o mesmo ato com o fim de alcançar alguma coisa. Na meditação, o fim não difere dos meios. Mas, o método vos promete alguma coisa; é um meio que leva a um fim. Se o meio é mecânico, o fim será um produto da máquina; é a mente mecânica que diz: “Obterei tal coisa”. Temos de estar completamente livres de todos os métodos e sistemas; isso já é o começo da meditação; já estamos a negar uma coisa que é totalmente falsa e sem significação. E há, ainda, os que praticam o percebimento. Pode-se “praticar” percebimento? Se o fazeis, então, em todo o tempo que estais “praticando percebimento”, vos estais tornando desatento. Portanto, ficai cônscio da desatenção; não vos exerciteis para vos tomardes atento; se estais cônscio da desatenção, desse percebimento vem a atenção, e não é necessário “praticá-la”. Compreendei isso, que é tão claro e tão simples. Não tendes necessidade de ir a Burma, à China, à Índia – lugares muito românticos, mas onde se vive fora da realidade. Lembro-me de uma ocasião em que eu viajava de automóvel, na Índia, com um grupo de pessoas. Eu ia sentado à frente, ao lado do motorista e, atrás, três pessoas discorriam a respeito do percebimento – pois pretendiam conversar comigo sobre esta matéria. O carro ia a toda velocidade. Na estrada achava-se uma cabra, e o motorista, por inadvertência, esmagou o pobre animal. Os cavalheiros que vinham atrás, falando sobre o percebimento, nada perceberam! Estais rindo; mas é isso mesmo o que todos nós estamos fazendo: muito interessados, intelectualmente, na idéia do percebimento, na investigação verbal, dialética, de opiniões, entretanto cegos ao que se está passando na realidade.
Não há nada para “praticar”; só há a coisa viva. E apresenta-se, aí, a pergunta: Como controlar o pensamento? O pensamento está sempre a divagar; quereis pensar numa coisa, mas ele foge para outra. Mandam-nos “praticar”, controlar; pensar numa imagem, numa sentença, em qualquer coisa – concentrar-nos; o pensamento “dispara” noutra direção, fazemo-lo voltar… e essa batalha, esse vaivém, prossegue indefinidamente. Assim, pergunta-se: Que necessidade há de controle do pensamento, e quem é a entidade que irá controlar o pensamento? Segui-me atentamente. A menos que seja compreendida esta pergunta real, não se poderá compreender o significado da meditação. Quando digo: “Tenho de controlar o pensamento”, quem é o “controlador”, o censor? O censor é diferente da coisa a que deseja controlar, moldar, alterar? Não são ambos (o censor e a coisa) a mesma entidade? Que sucede quando o pensador percebe que ele é o pensamento (ele o é, de fato); que o experimentador é a experiência – que sucede, então? Que cumpre fazer? Entendeis? O pensador é o pensamento, mas o pensamento se põe a divagar; então, o pensador, considerando-se separado, diz: “Tenho de controlá-lo”. O pensador é diferente da coisa chamada “pensamento”? Se não há pensamento, há pensador?
Que sucede quando o pensador percebe que ele é o pensamento? Que acontece, realmente, quando o “pensador” é o pensamento, assim como o “observador” é a coisa observada? Que acontece? Não existe mais separação, divisão e, por conseguinte, não há conflito; conseqüentemente, já não há necessidade de controlar ou moldar o pensamento. Que sucede então? Existe divagação do pensamento? Antes, controlava-se o pensamento, concentrava-se o pensamento, e havia conflito entre o “pensador”, que queria controlar o pensamento”, e o pensamento que queria divagar. Isso é uma coisa que acontece com todos nós, a todas as horas. Depois, repentinamente, percebe-se que o “pensador” é o pensamento – percebimento real, e não uma declaração verbal. E, então, que ocorre? Existe isso que se chama “divagação do pensamento”? Só quando o observador difere do pensamento, só então ele o “censura” – diz: “Este pensamento é correto, este pensamento é incorreto”, ou “o pensamento está divagando e tenho de controlá-lo”. Mas, quando o pensador percebe que ele é o pensamento, existe alguma divagação? Penetrai nisso, senhor, não aceiteis o que estais ouvindo, mas vede o fato por vós mesmo. Só quando há resistência, há conflito. A resistência é criada pelo pensador, que se considera separado do pensamento; mas, quando o pensador descobre ser ele o próprio pensamento, termina a resistência – o que não significa deixar o pensamento à solta; pelo contrário.
O conceito de controle e de concentração passa por uma total transformação: torna-se atenção – coisa muito diferente. Se se compreende a natureza da atenção, se se compreende que a atenção pode focalizar-se, percebe-se ser ela inteiramente diferente da concentração, que é exclusão. Perguntareis, então: “Posso fazer alguma coisa sem concentração? Não necessito de concentração para fazer alguma coisa?” Mas, não podeis fazer uma coisa com atenção? – esta não é concentração. “Atenção” significa aplicação total – quer dizer, escutar, ouvir, ver com a totalidade de nosso ser – com nosso corpo, nossos nervos, nossos olhos, nossos ouvidos, nossa mente, nosso coração, tudo. Nessa atenção total – na qual não existe divisão – pode-se fazer qualquer coisa; e nessa atenção não há resistência de espécie alguma. E, agora, cabe-nos considerar se a mente, que inclui o cérebro – este cérebro que anda tão condicionado, que é o resultado de milhares de anos de evolução, que é o depósito da memória – pode tornar-se quieta. Porque só quando a mente total se acha em silêncio, quieta, pode haver percepção, pode-se ver claramente, livre de confusão. Como pode a mente ficar quieta, em silêncio? Não sei se já verificastes por vós mesmo que, para olhardes uma bela árvore, ou uma nuvem cheia de luz e de glória, deveis olhar em completo silêncio, pois, de contrário, não se está olhando a árvore diretamente, porém através de uma certa imagem de prazer ou da lembrança de ontem; não se está olhando realmente a árvore: está-se olhando a imagem, em vez do fato.
Assim, perguntamos: Pode a totalidade da mente – que inclui o cérebro – ficar quieta? Muitas pessoas têm feito essa pergunta – pessoas verdadeiramente sérias – mas não conseguiram achar-lhe a resposta. Recorreram a artifícios, pois lhes disseram que a mente pode quietar-se mediante a repetição de palavras. Já experimentastes isto: recitar “ave-marias’ ou aquelas palavras sânscritas que certas pessoas trazem da Índia – mantras; repetir certas palavras para quietar a mente? Não importa qual seja a palavra, mas deve ser recitada com ritmo: coca-cola, qualquer palavra – repeti-a muitas vezes, e vereis como a mente se torna quieta. Mas essa mente aquietada está embotada; não é uma mente sensível, vigilante, ativa, viva, apaixonada, “intensa”. A mente embotada, embora diga: “Tive experiências extraordinárias, transcendentais”, está enganando a si própria.
A solução, portanto, não se encontra na repetição de palavras, nem no forçar a mente; muitos artifícios já têm sido impostos à mente a fim de aquietá-la. Entretanto, sabemos em nosso íntimo que, se a mente está quieta, não há mais nada que fazer, porque existe então a verdadeira percepção.
Como pode a mente – inclusive o cérebro – ficar completamente quieta? Recomendam alguns respirar adequadamente, tomando profundas inspirações, para oxigenar mais o sangue. A mente vulgar, limitada, pode – à força de respirarmos muito profundamente, dia após dia – tornar-se quieta; mas continua a ser o que é: vulgar e limitada. E, que tal a ioga? Aqui também há muitas coisas que considerar. Ioga significa “destreza na ação”, e não meramente a prática de certos exercícios, necessários para manter o corpo saudável, forte, sensível (o corpo precisa também ser alimentado adequadamente, e não empanturrado de carne, etc. – Não entraremos em minúcias a este respeito, pois provavelmente todos vós sois carnívoros). A “destreza na ação” exige grande sensibilidade do corpo, leveza do corpo, alimentação correta e não o que o paladar exige ou o que estais acostumado a comer.
Que cumpre então fazer? Quem faz esta pergunta? Vê-se muito claramente que nossa vida está em desordem, tanto interior como exteriormente; e a ordem, entretanto, é necessária, e deve ser tão perfeita como a ordem matemática; mas a ordem só pode ser estabelecida pela observação da desordem, e não pelo ajustar-nos a um plano de ordem, conforme um outro a concebe ou nós mesmos a concebemos. Do ver, do estar cônscio da desordem, resulta a ordem. Vê-se também que a mente deve tornar-se sobremodo quieta, sensível, vigilante, livre de todo e qualquer hábito, físico ou psicológico. Como conseguir isso? Quem faz esta pergunta? É a mente “tagarela” que a faz, a mente que possui tantos conhecimentos? Aprendeu ela uma coisa nova, ou seja que “só posso ver muito claramente quando estou quieto e, por conseguinte, tenho de ficar quieto”? Digo, então: “Como posso tornar-me quieto?” – Ora, essa pergunta é essencialmente errônea; no momento em que se pergunta “como”, está-se em busca de um sistema e, portanto, destruindo a própria coisa que se quer investigar, ou seja: Como pode a mente tornar-se completamente quieta – não mecanicamente, não forçada, obrigada a tornar-se quieta? A mente que está quieta, sem ter sido forçada a quietar-se, é sobremodo ativa, sensível, desperta. Mas, quando se pergunta “como”, cria-se a separação entre o observador e a coisa observada.
Ao compreendermos que não há método, nem sistema, nem mantra, nem instrutor, nem nada; neste mundo, que possa ajudar-nos a quietar-nos; quando percebemos a verdade de que só a mente quieta vê – a mente fica tranqüila.
Ora bem, a natureza do silêncio tem grande importância. A mente limitada pode aquietar-se em seu reduzido espaço; esse reduzido espaço, com sua limitada quietação, é a coisa mais morta que pode existir; vós o sabeis. Mas, a mente que tem um espaço sem limites, mais aquela quietude, aquele silêncio, e nenhum centro – como “eu”, como “observador” – essa mente é muito diferente. Naquele silêncio não existe nenhum observador. Essa qualidade de silêncio dispõe de um vasto espaço; é um silêncio sem limites e intensamente ativo. A atividade desse silêncio é toda diferente da atividade egocêntrica. Se a mente chegou tão longe (em verdade não é “tão longe”, pois trata-se de uma coisa que está sempre presente, mas nós não sabemos olhar…), então, talvez, aquilo que o homem vem buscando há tantos séculos – Deus, a Verdade, o Imensurável, “o que não tem nome”, o Eterno – se apresentará, sem ter sido chamado. Bem-aventurado esse homem: para ele existe a Verdade e o êxtase.
Trecho selecionado do livro “A Questão do Impossível” (p. 60-66)
A ATIVIDADE MECÂNICA DO PENSAMENTO
“A mente que compreendeu o inteiro movimento do pensamento torna-se sobremodo quieta, absolutamente silenciosa.”
Estivemos falando sobre a importância do pensamento e ao mesmo tempo de sua não importância; de como o pensamento é capaz de enorme atividade e, dentro de seu próprio campo, só tem liberdade limitada. Falamos também acerca de um estado mental totalmente descondicionado. Nesta manhã, podemos considerar esta questão do condicionamento – não apenas o condicionamento cultural, superficial, mas também considerar porque há condicionamento. Podemos investigar a natureza da mente não condicionada, da mente que transcendeu todo condicionamento. Cumpre-nos penetrar bem fundo nesta questão, a fim de descobrirmos o que é o amor. E, compreendendo o que é o amor, estaremos aptos a compreender a pleno o significado da morte.
Assim, em primeiro lugar, tratemos de averiguar se a mente pode tornar-se total e completamente livre de condicionamento. É bem óbvio que somos condicionados superficialmente pela cultura, pela sociedade, pela propaganda de que nos vemos rodeados, e também pela nacionalidade, por determinada religião, pela educação e pelas influências ambientes. Parece-me bastante fácil e simples ver como a maioria dos entes humanos, de todos os países e raças, estão condicionados pelas respectivas culturas e religiões. São eles moldados e mantidos dentro de um determinado padrão. Esse condicionamento é bastante fácil de rejeitar.
Mas, há o condicionamento mais profundo, como, por exemplo, uma atitude agressiva perante a vida. A agressividade implica tendência de domínio, busca de poder, de posses, de prestígio. Para nos libertarmos desse condicionamento, temos de mergulhar bem fundo em nós mesmos, porquanto ele é muito sutil e multiforme. Pode uma pessoa julgar que não é agressiva, mas, se declarada ou não declaradamente, ela tem algum ideal, ou opinião, ou escala de valores, existe então uma tendência para a arrogância, que se tornará gradualmente agressiva e violenta. Qualquer um pode observar isso em si mesmo. Atrás da própria palavra “agressividade” – ainda que a pronunciemos muito docemente – há um certo impulso, uma atividade furtiva e predominante, imperiosa, a qual se torna cruel e violenta. Esse condicionamento agressivo precisa ser descoberto, para vermos se o herdamos do animal ou se nos tornamos agressivos pelo prazer de nos impormos aos outros, de tomar-lhes a frente.
Outra forma de condicionamento é o que resulta da comparação. “comparamo-nos” com aquilo que consideramos nobre ou heróico, com o que gostaríamos de ser, em oposição ao que realmente somos. A atividade comparativa é uma forma de condicionamento; essa atividade, por sua vez, é extremamente sutil. Comparo-me com alguém que é um pouco mais inteligente ou fisicamente mais belo do que eu. Secreta ou abertamente, há, em vosso interior, um constante monólogo de caráter comparativo. Observai isso em vós mesmo. Onde há comparação, há sempre uma certa forma de agressividade, uma determinação de conseguir o que queremos, e, quando não o conseguimos, um sentimento de frustração, de inferioridade. Desde a infância somos condicionados para comparar. Nosso sistema educativo baseia-se na comparação – dar notas, fazer exames. Quando nos comparamos com alguém que é mais inteligente, sentimos inveja, despeito, e segue-se o conflito. Comparação implica medida; estou a medir-me, em comparação com uma coisa que se me afigura melhor ou mais nobre.
Pergunta-se: “Pode a mente libertar-se desse condicionamento social e cultural, desse medir e comparar, do condicionamento de medo, de prazer, de recompensa e de castigo? Nossas estruturas morais e religiosas baseiam-se totalmente nesse condicionamento. Por que razão somos condicionados? Vemos as influências externas que nos estão condicionando e, interiormente, a “voluntária necessidade” de sermos condicionados. Porque aceitamos tal condicionamento? Porque se deixou a mente condicionar? Qual o fator que está atrás de tudo isso? Por que razão eu, nascido num certo país, numa certa cultura, que me denomino hindu, com toda a carga de superstição e tradição imposta pela família, pela sociedade – por que razão aceito esse condicionamento? Qual o impulso existente atrás disso? Qual o fator que constantemente exige, aceita, cede ou resiste a esse condicionamento? Vemos que desejamos estar em segurança, numa sociedade que está seguindo determinado padrão. Se não observamos esse padrão, podemos perder nosso emprego, ficar sem dinheiro, não sermos considerados entes humanos respeitáveis. Contra ele nasce a revolta, e essa revolta forma o seu peculiar condicionamento – como está acontecendo com a maioria dos jovens, hoje em dia. Devemos descobrir esse impulso que nos faz ajustar-nos a um padrão. A menos que, por nós mesmos, o descubramos, permaneceremos condicionados, de uma ou de outra maneira, positiva ou negativamente. Do nascimento à morte, vemos esse processo continuamente em vigor. Pode uma pessoa revoltar-se contra ele, buscar refúgio noutro condicionamento, recolher-se a um mosteiro, como fazem certos indivíduos que devotam sua vida à contemplação, à filosofia, mas o movimento é sempre o mesmo. Que mecanismo é esse que se acha em constante movimento, ajustando-se a diferentes formas de condicionamento?
O pensamento está perpetuamente condicionado, já que é reação do passado, como memória. O pensamento é sempre mecânico, facilmente deixa-se cair num padrão, numa rotina; e pensais, então, estar em extraordinária atividade – na rotina católica, na rotina comunista, ou noutra qualquer. Essa é a coisa mais fácil e mecânica que se pode fazer; e pensamos estar vivendo! Assim, embora o pensamento desfrute, em seu próprio campo, uma certa e limitada liberdade, tudo o que ele faz é mecânico. Afinal de contas, uma viagem à Lua é uma coisa perfeitamente mecânica, já que é o resultado da ciência acumulada pelos séculos em fora. O cultivo do pensamento técnico pode levar-vos à Lua ou ao fundo do mar, etc. A mente quer estar seguindo uma rotina, quer ser mecânica, pois assim há proteção, segurança, e não há perturbações. O viver mecanicamente não é apenas estimulado pela sociedade, mas também por cada um de nós, porque esta é a maneira mais fácil de viver.
Assim, o pensamento, sendo uma atividade mecânica, repetitiva, aceita qualquer forma de condicionamento que lhe possibilite continuar em sua atividade mecânica. Um filósofo inventa uma nova teoria, um economista um novo sistema – e aceitamos tal rotina e ficamos a segui-Ia. Nossa sociedade, nossa cultura, nossas inspirações religiosas, tudo parece funcionar mecanicamente, embora nos proporcione uma certa e estimulante sensação. Quando ides à missa, encontrais um determinado enlevo, uma certa emoção, que se torna o padrão. Não sei se alguma vez experimentasses esta coisa – fazei-a, uma vez, para verdes como é “engraçada”: pegai um pedaço de pau ou uma pedra – qualquer uma serve, desde que tenha alguma forma – colocai-a sobre a lareira e todas as manhãs depositai a seu lado uma flor; dentro de um mês vos tereis habituado a ver essa coisa como um símbolo religioso e já começasses a indentificar-vos com ela.
O pensamento é reação do passado. Se uma pessoa aprendeu engenharia, como profissão, pode aumentar e ajustar esse conhecimento, mas ficará fixada nesse ramo de atividade; a mesma coisa, se a pessoa se formou em medicina, etc. O pensamento tem uma certa liberdade dentro de um dado campo, mas fica sempre limitado a seu funcionamento mecânico. Estais vendo isso, não apenas verbal ou intelectualmente, porém de fato? Estais tão cônscio disso como estais cônscio de ouvir aquele trem? (barulho de um trem que passa).
Pode a mente libertar-se dos hábitos que cultivou, de certas opiniões, juízos, atitudes e valores? Quer dizer, pode a mente libertar-se do pensamento? Se isso não ficar bem compreendido, então o que vou dizer sobre o próximo assunto que vamos examinar, nada significará. A compreensão deste ponto conduz, inevitavelmente, à seguinte questão: Se o pensamento é mecânico, se conduz forçosamente ao condicionamento da mente, que é então o amor? O amor é produto do pensamento? É o amor nutrido, cultivado, pelo pensamento, dependente do pensamento?
Que é o amor? – mas, tenha-se em mente que a descrição não é a coisa descrita, a palavra não é a coisa. Pode a mente libertar-se da atividade mecânica do pensamento, a fim de descobrir o que é o amor? Para a maioria de nós, o amor está associado, ou igualado ao sexo. Essa é uma forma de condicionamento. Ao investigardes essa coisa realmente tão complexa, intricada e sumamente bela, deveis ver o quanto a palavra “sexo” condicionou a mente.
Dizemos que não queremos matar, que não iremos para o Vietnã ou outro lugar, para matar gente; mas não nos importamos de matar animais. Se vós mesmo tivésseis de matar um animal, para vossa alimentação, e vísseis quanto isso é horrível, seríeis capaz de comer esse animal? Duvido muito. Mas não vos importais que o carniceiro o mate, para vós o comerdes; quanta hipocrisia!
Perguntamos, pois, não só o que é o amor, mas também o que é a compaixão. Na cultura cristã, os animais não têm alma, foram postos na Terra por Deus, para vós os comerdes; tal é o condicionamento cristão. Em certas partes da Índia, é pecado matar – matar uma mosca, um animal, qualquer ser. Lá, portanto, não matam o mais insignificante inseto, vão ao extremo do exagero; esse é o condicionamento deles. E há os que são contra a vivissecção e, contudo, ostentam suntuosos casacos de peles – a mesma hipocrisia por toda a parte!
Que significa ser compassivo? Ser compassivo, não apenas verbalmente, mas de fato? A compaixão é questão de hábito, de pensamento, questão de repetição mecânica da ação bondosa, cortês, delicada, terna? Pode a mente, que se acha toda entregue à atividade do pensamento, com seu condicionamento, sua repetição mecânica, ser compassiva, por pouco que seja? Poderá falar de compaixão, aprovar a reforma social, ser generosa para com os “pobres pagãos”, etc.; mas, isso é compaixão? Quando o pensamento dita, quando o pensamento está ativo, pode haver algum lugar para a compaixão? – sendo a compaixão ação sem motivo, sem interesse egoísta, sem nenhuma idéia de medo, nenhuma idéia de prazer.
Assim, pergunta-se “O amor é prazer?” – o sexo, decerto, é prazer. Nós achamos prazer na violência, achamos prazer em realizar alguma coisa importante, na arrogância, na agressividade.
Achamos também prazer em ser “importantes”. E tudo isso é produto do pensamento, produto da medição: “Eu fui aquilo” e “Eu serei isto”. O prazer (no sentido em que dele estamos falando) é amor? Como pode a mente que se acha toda entregue ao hábito, à medição e à comparação, saber o que é amor? Podemos dizer que o amor é isto ou aquilo – mas tudo isso é produto do pensamento.
Dessa observação vem a questão. Que é a morte? Que significa isto – morrer? Morrer deve ser a mais maravilhosa das experiências! Deve significar que uma coisa chegou completamente a seu fim. O movimento que fora desencadeado – conflito, luta, confusão, desesperos e frustrações – cessou subitamente. A atividade do homem que quer tornar-se famoso, que é arrogante, violento, brutal – essa atividade é interrompida. Já notastes que tudo o que tem continuidade psicológica se torna mecânico, “repetitivo”? Só quando cessa a continuidade psicológica, surge alguma coisa totalmente nova; isso podeis observar em vós mesmo. Criação não é a continuidade do que é ou do que foi, mas o findar dessa continuidade.
Ora, pode-se morrer psicologicamente? Entendeis esta pergunta? Podeis morrer para o conhecido, morrer para o que foi – não com o fim de vos tornardes outra coisa – sendo esse morrer o fim do conhecido, a libertação do conhecido? Afinal de contas, a morte é isso.
O organismo físico, naturalmente, morrerá; dele se abusou, foi submetido a maltrates e frustrações; comeu e bebeu coisas de toda espécie. Vós sabeis de que maneira viveis, e pelo mesmo caminho continuareis até ele (o organismo físico) perecer. O corpo, por motivo de acidente, de velhice, de doença, da tensão da constante batalha emocional, no interior e no exterior, se deforma, torna-se feio, e morre. Nesse morrer há autocompaixão, e ela existe também quando outra pessoa morre. Quando morre alguém que pensamos amar, não há em nossa tristeza uma grande porção de medo? Porque nos vemos sós, abertos a nós mesmos, sem ninguém para nos amparar, nos dar conforto. Nossa tristeza é toda mesclada dessa autocompaixão e desse medo e, naturalmente, nessa incerteza, aceitamos qualquer espécie de crença.
A Ásia inteira crê na reencarnação, no renascer em outra vida. Se indagamos o que é que vai renascer na próxima vida, deparam-se-nos dificuldades. Que é que vai renascer? Vossa pessoa? Que sois vós? – um monte de palavras, de opiniões, apego a vossas posses, a vossos móveis, vosso condicionamento. Esse monte de coisas, que chamais vossa alma, vai renascer na próxima vida? Reencarnação implica que o que hoje sois determina o que sereis na próxima vida. Portanto, comportai-vos bem! – não amanhã, mas hoje, porque pelo que hoje fazeis ides pagar na próxima vida. Os que crêem na reencarnação pouco se importam com seu comportamento; trata-se de uma mera crença, sem valor nenhum. Reencarnai-vos hoje, renovai-vos hoje, e não na próxima vida! Mudai completamente esta vida, agora; mudai-a com uma grande paixão, fazei a mente despojar-se de todas as coisas, de todos os condicionamentos, de todos os conhecimentos, de tudo o que pensar ser “correto”; esvazia-a. Sabereis então o que significa morrer; sabereis então o que é o amor. Porque o amor não pertence ao passado, ao pensamento, à cultura; não é, tampouco, prazer. A mente que compreendeu o inteiro movimento do pensamento se torna sobremodo quieta, absolutamente silenciosa. Esse silêncio é o começo do novo.
Trecho selecionado do livro “Onde Está a Bem-aventurança” (p. 118-122)
Peço-vos, portanto, não aceiteis o que este orador está dizendo, mas, sim, vos sirvais dele como um espelho, no qual vos vedes refletidos tais como sois. Isso pode ser um tanto assustador, mas é necessário vos verdes realmente nesse espelho, a fim de descobrirdes o verdadeiro, sem ser conforme alguma opinião, ou segundo a experiência ou a teoria de outrem. Estamos considerando a questão das relações, questão sumamente importante, porquanto a vida, em todos os seus aspectos, é relação; a vida cessa quando não há relação. O monge que se retira para urna caverna solitária, ou uma cela, ou o que quer que seja, continua a estar em relação, ainda que não pareça. Pode estar em relação com uma idéia, um conceito, uma fórmula; ele continua num estado de relação. E “estar em relação” significa estar ativo no presente, pois de outro modo não há relação. Para a maioria de nós, “relações” significa lembranças de prazeres ou dores acumuladas nas relações com outra pessoa – nas relações entre marido e mulher, entre os filhos, etc. Assim, todas as nossas relações – se as observamos bem – baseiam-se numa imagem. E a imagem é o passado; pode-se-lhe tirar ou acrescentar alguma coisa, mas, no âmago, ela é sempre o passado. Podeis ver muito facilmente como se forma essa relação, essa imagem. Não há necessidade de examinar isso, porquanto o seu mecanismo é bastante óbvio: o pensamento, remoendo o insulto, o prazer, as exigências e apetites sexuais e sua satisfação, etc., formou, a pouco e pouco, essa imagem de prazer e de dor que constitui a essência de todas as relações, sejam as relações entre o homem e a mulher, sejam as relações entre o indivíduo e a comunidade ou entre a comunidade e a nação ou o mundo. Assim, quando se está examinando esta questão das relações, torna-se naturalmente necessário compreender, por inteiro, o processo do pensar. Existe uma relação verdadeira no amor, tal como o conhecemos? No amor, que lugar cabe ao pensamento? Existe amor, se existe pensamento?
E que significação tem o prazer nas relações? – seja o prazer sexual, seja o prazer de estar em companhia de outrem, de viver com outrem, e todos os problemas daí decorrentes. Tende a bondade de observar isso em vós mesmos, em vez de vos limitardes a escutar o que digo. Porque, se o amor é prazer, quando esse prazer é contrariado, há ciúme, ódio, cólera. E pode haver ciúme quando há amor? Todavia, é isso o que acontece: dizemos “Amo-te”, e daí decorre medo, agonia, ansiedade, o desejo de dominar, de possuir, de ser possuído, de dar. Possuir é também uma forma de prazer. Tudo isso se encontra naquilo que chamamos “amor”. Se não existe amor, então que é “relações”? É bem evidente que nós não temos amor. Se houvesse amor, haveria uma educação de espécie totalmente diferente; não estaríamos destruindo os nossos filhos. Portanto, cumpre examlnarmos esta questão do prazer e, examinando-a, depara-se-nos também a questão da dor e do medo. O prazer é mantido e nutrido pelo pensamento. Este é um fato bem simples, que qualquer um, por si próprio, pode observar: a lembrança de um incidente agradável, a que o pensamento dá continuidade hoje e espera ver repetido amanhã. Nesse processo existe o medo de não o termos amanhã, e o desejo de que ele nos seja garantido.
O pensamento, pois, tem uma importância imensa em nossa vida, em nossas relações. O pensamento gera inveja, comparação, ciúme, e por essa razão não estamos de modo nenhum em relação. Quando cada ente humano vive em seu próprio isolamento, em sua própria atividade egocêntrica (ainda que seja casado, tenha filhos, relações sexuais, etc., ele está sempre isolado), como pode haver alguma espécie de relação?
Assim, quando vemos, realmente, e não teoricamente, esse fato, ou o aceitamos tal qual é, acalentamo-lo, damos-lhe polimento e uma enorme significação, ou rejeitamos de todo a sua estrutura, negamos toda essa tradição de relações geradoras de tanto ódio, e ciúme, e antagonismo. E, então, vemo-nos também forçados a perguntar: Porque existe tanto sofrimento neste estado de relação? Porque tem o coração humano de arcar com tão pesado fardo, em todo o mundo, da aldeia mais atrasada à urbe mais “sofisticada”? Pode o sofrimento terminar?
Muito importa fazer esta pergunta. Não devemos acostumar-nos com o sofrimento; e isso é o que faz a maioria de nós. Com ele nos conformamos, aceitamo-lo, ou adoramo-lo, à maneira dos cristãos, simbolizado na Igreja. Mas, nunca indagamos porque existe esse sofrimento; não apenas o sofrimento individual, mas o sofrimento humano, a dor da humanidade, a dor do mundo. O homem que não tem o que comer nem onde abrigar-se é um ente oprimido, sofredor. E o opressor é igualmente sofredor. E sofredor é o sacerdote, tanto quanto o negociante; toda a humanidade leva essa pesada carga de sofrimento. E nós o aceitamos como parte de nossa existência. Quando “aceitamos” qualquer coisa, seja uma coisa muito bela que vemos num quadro, sejam os contornos da montanha ou a árvore toda florida -quando aceitamos qualquer coisa e com ela nos habituamos, nossa mente e nosso coração se embotam, se entorpecem. E nesse estado não existe inocência.
Assim, é possível acabar com o sofrimento? Tem um ente humano, que vive neste mundo, com família, filhos, que vive no isolamento, no desespero, na ansiedade, cheio de “sentimentos de culpa”, etc. – tem esse ente humano alguma possibilidade de libertar-se do sofrimento? Quer dizer, é possível analisar todo o problema do sofrimento – como vem ele, de que fonte brota, como tem continuidade em nossa vida, escurecendo-nos os olhos, o coração, a fala, a visão das coisas? Há necessidade de o analisarmos, passo por passo, examiná-lo, descobrir-lhe a causa? E quando se descobre e compreende a causa do sofrimento, ele se acaba? Claro que não; isso nunca aconteceu. Deve haver, portanto, uma maneira diferente de se alcançar o fim do sofrimento, a compreensão do sofrimento, do sofrimento que o amor produz, do sofrimento que há quando não somos amados pelo ente que desejamos amar, do sofrimento que nos oprime o coração. Pode esse sofrimento terminar, para que possamos viver como seres humanos, com deleite, com beleza, com felicidade, com a Verdade? Isto não é nada de enigmático, procedente do “misterioso” Oriente: é um problema humano.
Antes de tudo, para se pôr fim ao sofrimento é necessário compreender a natureza do tempo, porquanto nós aceitamos o tempo como um meio de superar dificuldades, de resolver dificuldades. O sofrimento existe, e nós dizemos: gradualmente, através do tempo, poderemos, de alguma maneira, afastá-lo de nós. O sofrimento tem fim por meio de tempo – do tempo psicológico e também do tempo cronológico? No tempo cronológico, poderemos habituar-nos com ele, ir-nos conformando com ele, gradualmente, dia por dia. Mas, psicologicamente, interiormente, dizemos para nós mesmos: “Dele me livrarei lentarnente, ou tratarei de esquecê-lo, de racionalizá-lo, de fugir dele.” Positivamente, só há uma maneira de acabar com o sofrimento – mas não por meio da análise, da fuga, da racionalização, e, sim, enfrentando-o, olhando-o, pondo-nos em completa comunhão, em integral relação com ele.
Atentai para isto: quando olhais uma árvore, nunca o fazeis a não ser com a imagem que tendes dessa árvore, com o conhecimento botânico que dela tendes. Vossos olhos a vêem através da imagem do conhecimento, da lembrança ou do prazer; nunca a olhais sem a imagem, sem pensamento, nunca a olhais simplesmente. E tenho certeza de que nunca olhastes vossa esposa ou marido dessa maneira, isto é, sem a imagem que tendes a respeito dela ou dele. E quando olhais para a nuvem, para a ave, para a luz refletida na água, sem a imagem, estais então diretamente em contato com a coisa, não há espaço entre vós e a coisa que estais observando. Fazei-o, uma vez, e vereis, por vós mesmos, o que acontece. O intervalo de tempo entre o observador e a coisa observada, a distância, o espaço, passa por uma extraordinária mudança. Da mesma maneira, olhai o sofrimento, sem tratar de evitá-lo ou de acalentá-lo; olhai-o, ponde-vos inteiramente em contato com ele. E com ele só estareis em contato se lhe dispensardes toda a atenção e cuidado; e só podeis dispensar-lhe toda a atenção se vossa mente estiver quieta. Quando não há resistência ao sofrimento, vê-se que ele passa por uma transformação total; mas isso não significa que aceitais o sofrimento, que com ele vos identificais. Vós sois o sofrimento; não há “vos” e o “sofrimento”. O observador, o pensador, é o pensamento. Ao perceberdes esse fato com o máximo de clareza – não como idéia, porém como realidade, como uma coisa que apalpais, tocais, vedes – notareis que o medo, bem como o sofrimento, chega ao seu fim quando entramos em direto contato com ele.
Cumpre-nos também descobrir individualmente o que é o amor. Como sabeis, muito se fala a respeito dele. Como tem sido deturpada esta palavra, pelo político, pelo teórico, pelo sacerdote, pelo marido, pela mulher – como os entes humanos a têm deturpado, esta bela palavra! Ela está fortemente “carregada”. E para descobrir o que ela significa, não intelectualmente, porém entrando em direto contato com ela, nada se deve fazer. Se alguma coisa se faz, trata-se de ação do pensamento, e o pensamento é velho. O pensamento funciona sempre no campo do “conhecido”. E só quando se está libertado do “conhecido” pode haver inocência, pode haver amor. Compreendeis? Podeis aprender essa frase, mas a palavra não é a realidade. Isso significa, com efeito, que, para amar, não deve haver medo, não deve haver sofrimento. Não se trata aqui do amor por um ou do amor por todos, porém do amor puro e simples. E este só pode nascer quando se compreende inteiramente a atividade do “eu”, do “ego”, com todas as suas invenções, sua solércia, seus absurdos; quando se entra realmente em contato com a futilidade do pensamento.
O pensamento tem seu lugar próprio, tecnologicamente; se não sabeis para onde vos estais dirigindo, não conseguireis chegar a vossa casa; tendes de saber o caminho para lá. Mas, se o amor é produto do pensamento, então, nele se encontra dor, ódio, inveja, divisão. Assim, em verdade, amar significa morrer, não? Morrer para tudo o que se conhece como sendo “eu”. Mas, ninguém quer morrer dessa maneira. Somos todos excessivamente egoístas, excessivamente egocêntricos, com nossas opiniões e juízos, nossa pátria, nossos deuses e crenças. Seria maravilhoso se pudéssemos lançar fora tudo isso, não pela força da vontade ou da determinação, porém simplesmente, vendo-o com olhos que nunca foram contaminados pelo passado, vendo-o de maneira totalmente nova! Quer dizer, vendo o “ego”, o “eu”, com olhos límpidos. Um dos nossos problemas é que somos muito velhos, não fisicamente, talvez, porém velhos em tradição, bem no fundo de nós mesmos, historicamente. Sendo tão velhos, não nos renovamos; a renovação não pertence ao tempo; é o fim do ontem. E, quando finda o ontem, existe o amor nas relações.
18 de maio de 1968.
Trecho selecionado do livro “O Novo Ente Humano” (p. 82-90)
Autoconhecimento não significa acumular conhecimentos sobre si próprio; significa observar a si próprio. Se aprendo acumulando conhecimentos, nada aprendo a respeito de mim mesmo. Há duas maneiras de aprender. A primeira é aprender acumulando conhecimentos c, com eles, observar; isto é, observar através do crivo do passado. Observo-me, tenho experiências, acumulo conhecimentos derivados dessas experiências; olho-me através dessas experiências, isto é, olho-me mediante o passado. Essa é uma das maneiras de aprender. A outra maneira é observar o movimento de todos os pensamentos, de todos os “motivos”, e jamais acumular. Por conseguinte, este aprender é um processo constante.
Explicando melhor: Vejo que sou violento; observo minha violência e a condeno. Condenando-a, aprendi que não deve existir violência. Na próxima ocasião em que me observo como pessoa violenta, reajo de acordo com o que aprendi. Por conseguinte, não há uma observação nova, porque estou olhando a nova experiência com “olhos velhos”, com o conhecimento anteriormente adquirido. Logo, não estou aprendendo. Aprender é um movimento constante, não oriundo do passado; um movimento de momento em momento, portanto sem acumulação. Nós somos o resultado de milhares de anos de acumulação, e continuamos a acumular; e, se quiserdes compreender essa acumulação, cumpre-vos observá-la e deixar de acumular. Deve, pois, haver uma observação que seja um constante aprender sem acumulação. Acumulação é o “centro”, o eu, o “ego”; e, para compreendermos esse centro, devemos estar livres de toda espécie de acumulação; não, deixarmos de acumular num nível, para acumularmos noutro nível, com outro alvo.
Temos, pois, de “aprender o que somos”, observando-nos sem condenação, sem justificação, observando simplesmente nossa maneira de andar, de falar, as palavras que empregamos, os diferentes “motivos”, propósitos, intenções: estando totalmente vigilantes, sem escolha. E esse percebimento não significa acumulação, mas, sim, estar vigilante de instante em instante. Se, em qualquer momento, deixardes de estar vigilante, não vos preocupeis: começai de novo. Vossa mente está, assim, sempre nova. A auto-observação, pois, não se limita ao nível superficial, mas penetra o nível mais profundo, o chamado “nível inconsciente”, “oculto”. Como observar uma coisa que se acha mui profundamente radicada, oculta, fechada? Nossa consciência é tanto superficial como oculta; e temos de conhecer todo o conteúdo dessa consciência, uma vez que o conteúdo integra a consciência. Não são coisas separadas: o conteúdo é a consciência.
Por conseguinte, para se compreender o conteúdo deve haver observação sem o “observador”. Esta é uma das coisas mais fascinantes: descobrir como olhar a vida de maneira nova. Para observarmos o “oculto”, precisamos de olhos não condicionados pelo passado; não devemos ser hinduístas, cristãos, etc. Devemos olhar-nos cada vez como se fosse a primeira vez e, por conseguinte, sem acumular. Se puderdes observar-vos dessa maneira, observar vossas ações, seja no trabalho, seja no lar; observar vossos apetites sexuais, vossa ambição – observar sem condenar, sem justificar, observar simplesmente – vereis que nessa observação não há conflito de nenhuma espécie. Mas, se observardes com uma mente torturada, deformada, jamais descobrireis o que é a verdade. Entretanto, em geral, nossa mente é deformada, torturada, degradada pelo controle, pela disciplina, pelo medo.
Afirmam os psicólogos que precisamos sonhar, senão enlouqueceremos. Enquanto dormimos, deve haver sonhos, devem acontecer coisas em sonhos. Tomai interesse nesta questão, por favor, porque, em vossa vida, sonhais todas as noites. Quando dormis, há sempre alguma espécie de sonho, de atividade; e dizem aqueles especialistas que sonhar é essencial à sanidade mental do ente humano. Ora, nós vamos questionar essa afirmativa averiguar se de fato é absolutamente necessário sonharmos. Temos, pois, de rejeitar tudo o que dizem os profissionais e interrogar-nos, descobrir por nós mesmos o que são os sonhos. Não são eles a continuação das atividades de cada dia, porém em forma simbólica? Peço-vos não concordar nem discordar. Nós estamos investigando juntos, viajando juntos e, por conseguinte, não pode haver concordância nem discordância. Estamos, vós e eu, observando, indagando se é realmente necessário sonhar.
Que são os sonhos? Não são eles o movimento da vida diária – disputas, infortúnios, violência, ressentimentos – não são eles a continuação desse movimento enquanto dormimos, porém em forma simbólica – visual ou verbal? Verificai isso. Deveis saber que o cérebro necessita de ordem, para funcionar racionalmente. Já alguma vez, antes de dormir, passastes em revista o dia – o que fizestes, o que dissestes, os erros cometidos, etc.; já alguma vez passastes em revista o dia, antes de dormir? Porque é necessário fazê-lo? Porque, se não o fizermos conscientemente, enquanto despertos, a mente consumirá energia, durante o sono, para pôr a si própria em ordem.
Estais-me seguindo? A ordem é necessária na vida de cada dia. O cérebro exige uma vida com ordem, uma vida sã, senão ele não funcionará eficientemente. E ordem é virtude, pois, se não sois virtuoso, se estais em desordem, como pode o cérebro funcionar? O cérebro só é capaz de funcionar impecavelmente quando há nele segurança e ordem.
Assim, enquanto dormis, enquanto o corpo dorme, o cérebro tem de pôr-se em ordem, porque, no dia seguinte, irá enfrentar de novo a desordem; por conseguinte, necessita de um meio de extinguir a desordem, de colocar-se em ordem. Esse meio são os sonhos. Mas se, durante as horas de vigília, produzirdes a ordem, então, quando o corpo físico estiver dormindo, o cérebro poderá viver uma vida totalmente diferente. Isso faz parte da meditação. A pessoa que não tem ordem, que se acha em desordem, dizendo uma coisa e fazendo outra, não pode de modo nenhum compreender o que é meditação. Ora, como podeis vós, como pode o cérebro, a mente, estabelecer a ordem durante o dia? Ordem é virtude; não a virtude da moralidade social, mas a virtude da ordem.
A ordem não é uma fórmula traçada pelo Gita, pela Bíblia, pelo instrutor. A ordem é uma coisa viva, e não uma fórmula. Se tendes alguma fórmula, há desordem entre o que sois e o que deveríeis ser; por conseguinte, nessa contradição há conflito. Conflito é desordem. –Assim, só tereis possibilidade de descobrir o que é a ordem se compreenderdes a desordem. Nossa vida de cada dia, tal como a estamos vivendo, é desordem, não achais?
Se sois realmente honesto perante vós mesmo, podeis dizer que vossa vida está perfeitamente em ordem, que viveis sã, lúcida, harmoniosamente? Não podeis, decerto; se assim fosse, não estaríeis aqui. Seríeis entes humanos livres, maravilhosos entes humanos, criadores de uma sociedade diferente. Como seres humanos, estamos em desordem, em contradição. Observai, pois, vossa desordem e contradição, sem nada rejeitar, nada justificar; vede como estais assustado, como sois invejoso, como ambicionais prestígio, posição, como temeis vossa esposa ou marido, como dependeis do que vosso vizinho pensa de vós. Observai esse conflito, essa luta constante, sem justificar nem condenar. Observai totalmente essa desordem, e vereis então surgir uma ordem verdadeiramente harmoniosa, toda movimento, e vida, e vigor. Vereis que, em todas as horas do dia, estareis pondo em ordem a vossa vida, nela estabelecendo uma ordem matematicamente precisa. E, para compreenderdes essa ordem, tendes de compreender o medo e o prazer, que examinamos ligeiramente na reunião anterior. E. compreendendo tudo isso, sem escolha, vereis que, quando dormis, vossa mente não tem sonhos. Em conseqüência, a mente, o cérebro se renova durante o sono e, na manhã seguinte, o cérebro tem urna extraordinária capacidade. (Faculdade de receber e reter – power of receiving and retaining – Dic. Funk & Wagnals – N. do T.)
Isso faz parte da autocompreensão. Deveis amá-lo, devotar-lhe vossa vida – devotar vossa vida à compreensão de vossa vida, porque vós sois o mundo, e o mundo é vós; portanto, se vos transformardes, transformareis o mundo. Esta não é uma mera idéia intelectual, porém uma coisa de que deveis compenetrar-vos ardorosa e apaixonadamente. E a meditação liberta tremendas energias.
Pensais que, para se alterar o ambiente, necessita-se de algum sistema ou método. Graças ao método, ao sistema, pode-se atuar eficientemente. Se desejo alterar o ambiente, preciso planejar o que cumpre fazer. Se desejais construir uma casa, tendes de traçar o respectivo plano. (Krishnamurti está apenas citando os argumentos dos que pensam ser necessário um sistema ou método para se efetuar a transformação – N. do T.) Ora, ao estabelecer-se um sistema, que sucede? Que sucede, exteriormente? São necessários uns poucos indivíduos competentes para pôr em prática o sistema. E que acontece, então? Esses indivíduos se fazem bem mais importantes do que o sistema ou a idéia de alterar o ambiente. Já não notastes isto? Tornam-se os mandões, os que utilizam o sistema para tornar a si próprios importantes à maneira dos políticos por este mundo fora. Prestai atenção a isto, por favor. Para efetuar-se a mudança do ambiente, necessita-se de um grupo de indivíduos competentes, munidos de um sistema. Mas, esses indivíduos competentes são entes humanos como nós outros, sujeitos à cólera, ao ciúme, à inveja, desejosos de posição. Já tendes observado isso, não? Usam, pois, o sistema para seus próprios fins, e esquecem-se do resto.
E, agora, queremos um sistema de meditar. Vede a diferença entre estas duas coisas: sistema e meditação. Pensamos que seríamos capazes de meditar, de pensar, de investigar eficientemente, se tivéssemos um sistema. Mas, que implica um sistema? Tende, pois, bem clara na mente a distinção entre ambas as coisas. Se desejais alterar o ambiente físico, necessitais de um grupo de indivíduos competentes para pôr em prática o sistema. Tais indivíduos deveriam ser impessoais, não egotistas, não cuidar de encher os próprios bolsos – figurada e fisicamente falando. Por conseguinte, os entes humanos importam mais do que o sistema. Percebeis isto?
O mesmo dizemos em relação à transformação de nós mesmos, ou seja que só mediante um sistema poderemos transformar-nos, só mediante um sistema poderemos aprender a meditar. Porque o sistema parece conferir eficiência. Confere-a, de fato? Como sabeis, todo guru, na Índia e noutras partes, oferece um sistema de meditação. Ora, os sistemas implicam repetição, prática, observância de um método. Se seguis algum método, sistema ou prática, essa coisa se torna uma rotina – a que procurais fugir por meio de sexo ou de outras maneiras. Por conseguinte, evitai a todo preço os sistemas de meditação, porque uma mente mecânica não tem possibilidade alguma de descobrir o que é a verdade. A mente mecânica pode tornar-se bem disciplinada, ter muita ordem, mas essa ordem está em contradição com a ordem de que falamos, porque, nessa espécie de ordem existente na repetição, há contradição entre o que sois e o que deveríeis ser – o ideal. Existe, pois, essa contradição. E onde há contradição, há deformação; e a mente deformada, torturada, jamais descobrirá qualquer coisa nova. Portanto, não adoteis nenhum sistema, não sigais nenhum guru.
Certa vez, um famoso guru veio visitar-nos. Um episódio engraçado. Alguns de nós estávamos sentados num pequeno colchão e, por cortesia, nos levantamos e convidamos “o grande homem” a sentar-se naquele colchão. Sentou-se. Trazia um cajado. Depositou o cajado diante de si e ficou sentado, muito solene, como convém a um guru. E pôs-se a dizer-nos o que devíamos fazer – só porque estava sentado um pouco mais alto que nós (Os demais se sentaram no chão – N. do T.), no pequeno colchão que por polidez lhe oferecêramos. Vaidade, desejo de poder e posição, e de seguidores… Tais indivíduos jamais descobrirão o que é a Verdade. Só acharão o que desejam: sua própria satisfação.
Não há sistema de meditação. Se compreenderdes isso, vossas mentes se tornarão despertas, penetrantes, capazes de descobrir. Mas, que desejais descobrir? Nós, em maioria, desejamos experiências diferentes das experiências ordinárias, de todos os dias. Queremos “experimentar” um transcendental estado de “iluminação”, A palavra “experiência” significa “passar por” (um certo estado), e, ao desejardes “experiências transcendentais”, isso quer dizer que estais cansado do viver diário. Todos os que tomam drogas supõem que, por meio delas, terão experiências extraordinárias. Em suas “viagens” (Gíria dos viciados em drogas, ou seja o estado de “clarividência” provocado pela droga – N. do T.), suas experiências são expressões de seu próprio condicionamento. As drogas lhes dão uma certa vitalidade, uma certa lucidez, que nenhuma relação têm com o esclarecimento ou “iluminação”. Deste modo, por meio das drogas jamais se iluminarão.
Assim, que buscamos nós? Que deseja o homem? Ele vê o que é sua vida – tédio, rotina, um campo de batalha, luta constante, nunca um momento de paz, a não ser, talvez, ocasionalmente, por meio do sexo ou de outra coisa. Daí conclui que a vida é transitória, a vida é mutável e, portanto, deve haver uma coisa superior e permanente; essa permanência ele deseja, deseja algo diferente da mera rotina física, da mera experiência de cada dia. A essa coisa ele chama “Deus”. Conseqüentemente, crê em Deus; e todas as imagens e ritos baseiam-se nessa crença. A crença é produto do medo. Se não há medo, podeis ver a folha, a árvore, o céu estrelado, a luz, os pássaros… Há, então, beleza, e, por conseguinte, bondade; e onde está a bondade, aí se encontra a Verdade.
Cumpre, pois, compreender o viver diário. Precisamos compreender por que razão nossa vida é tão mecânica, porque seguimos outrem, porque cremos, porque não cremos, porque lutamos. Sabemos ser isso o que se está passando sempre em nossa vida cotidiana, e desejamos fugir dessa espécie de vida. Eis porque desejamos experiências mais amplas e profundas. E os livros, os gurus, os instrutores, prometem-nos a “iluminação”, esse estado extraordinário, Os sistemas no-la oferecem: “Praticai estas coisas, e a alcançareis; segui este caminho, e lá chegareis” – como se a Verdade fosse uma coisa fixada num lugar, como uma estação, aonde levam muitos caminhos.
Não há nenhum caminho e nenhuma Verdade fixada num ponto; por conseguinte, necessitais de uma mente sobremodo desperta, vigilante, capaz de aprender.
E temos, em seguida, a questão da concentração. Não sei quem vos diz tais coisas – que precisais de concentrar-vos, de aprender a controlar o pensamento, reprimir vossos desejos, nunca olhar para uma mulher ou um homem. Não sei porque prestais ouvidos a tais pessoas. já alguma vez vos concentrastes, isto é, fixastes a atenção em alguma coisa? Quando um colegial deseja olhar pela janela, para ver o movimento das folhas, ver a árvore e o transeunte, o professor lhe diz: “Olhe para o livro, não olhe para a rua”. Isso é concentração – focarmos a atenção e erguermos uma muralha em torno de nós para não sermos perturbados. A concentração se torna exclusão, resistência. Percebeis isto? Nessa concentração há sempre batalha. Desejais concentrar-vos e vossa mente foge, vosso pensamento se põe a perseguir isto ou aquilo, e, conseqüentemente, há conflito; se, entretanto, durante o dia, prestardes atenção, ainda que por poucos minutos de cada vez, se ficardes totalmente atento – com a mente, com o corpo, o coração, os olhos, os ouvidos, o cérebro – vereis que não há limites à atenção, não há resistência. Nesse estado de atenção, não há contradição. Prestai atenção e, em seguida, largai-a; recomeçai, tornai a “pegá-la”, para que a atenção seja cada vez sempre nova; sabereis então quando há desatenção, pois no estado de desatenção há conflito; observai o conflito, prestai-lhe toda a atenção, tomai pleno conhecimento dele, para que vossa mente se torne sobremodo viva, “não mecânica”. Isso faz parte da meditação.
Também vos dizem que deveis adquirir uma mente silenciosa, não é verdade? Este mesmo orador já vos disse tal coisa. Esquecei o que ele disse, mas vede por vós mesmo porque deve a vossa mente estar quieta, em silêncio. Vede-o por vós mesmo. Para verdes qualquer coisa com clareza, vossa mente não deve estar “tagarelando”. Se desejo escutar o que estais dizendo, minha mente deve estar quieta, não? Se desejo compreender o que estais dizendo, preciso escutar-vos. Percebeis? Por conseguinte, para escutar, para observar, a mente deve estar quieta. Só isso, e nada mais.
Ora, perguntais, corno pode a mente ficar tranqüila, se está sempre “tagarelando” a respeito disto e daquilo? Se tentais deter a “tagarelice”, essa tentativa redunda em conflito. A mente habituou-se a tagarelar, a falar entre si ou com alguém, a usar palavras e mais palavras, infinitamente. E se tentais deter essa torrente de palavras pela ação da vontade, surge contradição.
Por conseguinte, descobri porque tagarela a mente, investigai esse fato, compreendei-o. O seu tagarelar não tem muita importância. Mas, porque tagarela a mente? Porque precisa estar sempre ocupada com alguma coisa. Porque precisa estar sempre ocupada? Estou fazendo esta pergunta por vós, mas tratai de descobrir isso, perguntei o que aconteceria se a mente não tagarelasse, não se conservasse ocupada. Se vossa mente não estivesse ocupada, que aconteceria? Ver-se-ia diante do vazio, não é verdade? Se esse hábito cessasse subitamente, vos sentiríeis confuso.
Aquele vazio é o medo de vossa própria solidão. Desse medo, dessa solidão, desse vazio, tentais fugir, tagarelando ou ocupando-vos com alguma coisa. Assim, penetrai bem fundo nessa solidão, não tenteis reprimi-la ou dela fugir; observara simplesmente. Mas, só podeis observá-la com a mente quieta, porque, no momento em que a condenais, no momento em que dizeis “não devo tagarelar”, tendes conflito. Entretanto, se apenas observardes a solidão, descobrireis que vossa mente, em presença desse vazio, fica completamente só.
Há diferença entre solidão e “estar só”. Solidão é isolamento, total isolamento; e no viver cotidiano estamos sempre a isolar-nos. Em vossas atividades diárias, estais sempre a isolar-vos; podeis ser casado, dormir com vossa mulher, mas que está acontecendo? Tendes vossas próprias ambições, vossa avidez, vossos problemas, e ela tem os seus; ambos procuram estabelecer uma relação entre problemas diferentes. A atividade egocêntrica vos está isolando, e daí esse sentimento de aterradora solidão.
Compreendendo isso, ficais, então, só. Esse “estar só” significa total rejeição da autoridade – de toda autoridade espiritual, da autoridade de outrem ou da autoridade de vossos conhecimentos, acumulados como experiência, que é o passado. Rejeitando totalmente, em vós mesmos, a autoridade, já não seguis nenhum sistema; e, compreendendo o medo e o prazer, há, então, nessa compreensão, alegria. A alegria nada tem em comum com o prazer. Podeis ter um momento de grande alegria, mas, se ficais pensando nessa alegria, a reduzis a prazer.
A ordem não é uma fórmula; ela vem com a compreensão da desordem – que é a vossa vida. A virtude é uma coisa viva, como a humildade; não se pode cultivar a humildade. Graças a essa compreensão, a mente se torna sobremodo clara e, portanto, só. Surge então aquele silêncio não resultante de disciplinamento, e que não é o oposto do barulho – silêncio sem causa e, por conseguinte, sem começo nem fim. Vem então a essa mente, que se acha num estado de ordem absoluta e, portanto, completamente só, ou seja num estado de inocência – o que significa que ela jamais pode ser ferida – vem então a essa mente um maravilhoso silêncio.
O que nesse silêncio se passa é indescritível. Se descreves o que sucede, vossas palavras não são a coisa – a coisa descrita. A descrição não é a coisa descrita. Por conseguinte, a Verdade, aquela bem-aventurança, aquele inefável silêncio e seu movimento, não há palavras que possam descrevê-los. Se chegastes até aí, estais então esclarecido, não buscais mais nada, não desejais nenhuma experiência; sois luz. Esse é o começo e o fim da meditação.
Madrasta, 13 de janeiro de 1971.